domingo, 25 de julho de 2010

Olhares que tocam a alma

O Tudistão é um Estado (fictício) falido. A ex-república soviética entrou em crise, em 1993, com a morte do ditador Leonid Tuchek. O clamor popular por democracia, autonomia regional e liberdade religiosa foi ignorado pelo filho dele, que assumiu o governo. A economia é baseada na agricultura, há produção de coca e não se sabe o tamanho da reserva de petróleo. A população de 4.115.000 habitantes é dividida especialmente entre muçulmanos e ortodoxos.

A violência provocou a intervenção da Organização das Nações Unidas com uma missão de paz. Esse cenário foi criado pelo Centro Conjunto de Operações de Paz do Brasil para preparar militares e jornalistas para a atuação em áreas de conflito. O terceiro treinamento para profissionais de mídia ocorreu de 12 a 16 de julho.

Era tudo simulação e, por isso mesmo, não imaginava que os sentimentos e reações pudessem ser tão reais. Meu pior momento foi deixar um ferido para fora do bunker. Aquilo espezinhou a minha consciência, tirando-me preciosas horas de sono. O grito de “SOOOOOOOLTA!” ecoou diuturnamente em meu ouvido. O peso da suposta morte me atormentou durante um bom tempo. Meu êxtase, porém, foi atravessar uma estrada, rastejando na lama, e completar o exercício de campo sem tomar tiro.

O repórter sempre tenta humanizar a cobertura de um conflito com personagens, normalmente vítimas. E os olhares que tocam a alma são essenciais nesse caminho.

Eu andava sozinha pela base quando um militar veio em minha direção. O esforço para fingir que tudo estava bem não adiantou. Tenente-coronel, com experiência no Iraque, Kuwait, Croácia, Chipre e Haiti, o argentino Villagrán fala das áreas de conflito como se estivesse no quintal de casa, mas, diante de minha contida lágrima, confortou-me: “É importante não perder a sensibilidade.”

Nosso objetivo era conciliar a melhor cobertura jornalística com o mínimo risco. Meu grupo era observado por um capitão magrinho, de pele alva, que passara o treinamento inteiro posicionado em pontos estratégicos, disponível para ajudar. Rafael não se esforçava para parecer bacana, simplesmente era. De poucas palavras, no profundo brilho de seus olhos se notava a empolgação com o nosso progresso.

No Tudistão houve bombardeio aéreo, carro-bomba, sangue hollywoodiano, pressão psicológica... Sem vítimas verdadeiras, a simulação ganhou força por causa de personagens como esses, com olhares que tocam a alma.

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